Por Ana Aranha
(Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo - AGÊNCIA PÚBLICA)
Iara*, 18 anos, e Cenira
Sarmento, 66, viveram experiências parecidas quando adolescentes. Elas não
tiveram o luxo de levar bronca dos pais pela bagunça do quarto, como acontece
com as meninas dessa idade. Aos 14 anos, eram elas que arrumavam a bagunça dos
outros. Apesar da diferença de gerações, as duas tiveram a mesma sina: foram
enviadas por seus pais para trabalhar como empregadas domésticas em Belém como
continua a acontecer com muitas meninas do interior do Pará.
Iara tinha 14 anos
quando deixou a casa da família em Viseu (305 quilômetros da capital). Cenira
tinha 10 quando saiu de São Caetano de Odivelas (110 quilômetros de Belém).
Embaladas pela expectativa de um futuro melhor graças aos estudos na capital,
desembarcaram assustadas na cidade onde não conheciam ninguém. Foram direto
para a casa onde trabalhariam, morariam e aprenderiam lições mais duras do que
a rotina diária de limpar a casa, lavar a roupa, fazer o almoço, lustrar a
prata.
O primeiro
ensinamento foi sobre disciplina rígida. Iara não gosta de lembrar dos gritos
que a humilhavam quando esquecia de limpar um canto da casa. Cenira levava
cascudos, quando errava o lugar da louça.
Nas tardes em que Iara insistia em ir à escola, a patroa ralhava e
cinicamente ameaçava chamar o conselho tutelar. “Trabalho infantil é crime, tu
quer prejudicar seus pais?”. A menina se calava. Como ela, que não tinha nem
documento de identidade, poderia argumentar sobre a interpretação das leis? E
assim recebia o segundo ensinamento: a submissão.
Lição que era reforçada no cotidiano, até nos “conselhos” que recebia
dos patrões. Iara ganhava 100 reais mensais para trabalhar das 6 horas da manhã
até a meia noite, de segunda a domingo. Quando falava sobre o desejo de cursar
uma faculdade, ouvia da patroa: “Para com isso, menina, pobre tem que se
conformar com o seu lugar”.
Cenira, que cresceu em um tempo ainda mais duro com as trabalhadoras
domésticas, também recebia aulas diárias sobre o “seu lugar”. Dos 10 aos 15
anos, comia os restos da comida da família, vestia-se com as roupas usadas
pelas crianças de quem cuidava e dormia em um quartinho no fundo do quintal.
Esse era o seu pagamento pelo trabalho diário.
Mas ela não reclama da sorte: “Sei que fui lambaia [escrava], eu
tirava sangue pra fazer tudo naquela casa, cansei de lavar vaso sanitário com
as mãos. Mas aprendi o serviço, depois tive orgulho de virar arrimo da minha
família”. E conclui com a voz firme da convicção: “Eu acho um absurdo essa lei
que criança não pode trabalhar. Trabalhar é bom, não mata ninguém”.
Seu jeito de pensar reflete a opinião de grande parte da população
paraense, para quem trabalhar cedo pode ser uma parte importante da formação. E
ajuda a explicar porque Iara e Cenira, que nasceram com quase 40 anos de
distância, viveram experiências ainda bastante parecidas.
Mas há ao menos uma diferença fundamental entre as duas trajetórias, que
pode determinar destinos distintos para as duas.
LEIA MAIS